quinta-feira, abril 27, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra C: Carícia

CARÍCIA

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?

Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Quem nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

Fernando Pessoa

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quarta-feira, abril 26, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra C: Cantada

Paráfrase de Ronsard

Foi para vós que ontem colhi, senhora,
Este ramo de flores que ora envio.
Não no houvesse colhido e o vento e o frio
Tê-las-iam crestado antes da aurora.

Meditai nesse exemplo, que se agora
Não sei mais do que o vosso outro macio
Rosto nem boca de melhor feitio,
A tudo a idade altera sem demora.

Senhora, o tempo foge... e o tempo foge...
Com pouco morreremos e amanhã
Já não seremos o que somos hoje...

Por que é que o vosso coração hesita?
O tempo foge... A vida é breve e é vã...
Por isso, amai-me... enquanto sois bonita.

Manuel Bandeira

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Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra B: Busca

O Diadema

Eu quero uma mulher
Para receber o diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vasta e lisa cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia

Aproxima-te.

Murilo Mendes

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terça-feira, abril 18, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra B: Brotinho

Menina e Moça

Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem coisas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
Do cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; é raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar dos teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


Machado de Assis

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segunda-feira, abril 17, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra B: Beleza

De “Os Estatutos do Homem” (artigo XI)

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.


Tiago de Melo

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quarta-feira, abril 12, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra B: Beijo

Canção do Beijo Suave

Tua boca delicada
Pôs na minha, docemente,
Uma carícia magoada.

Não te sei dizer ao vivo
Como foi meigo e suave
Esse beijo fugitivo,

Esse beijo de um instante,
Leve como a folha morta
Caindo sobre o passante...

Ribeiro Couto

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segunda-feira, abril 10, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra A: Azul

Soneto do Desmantelo Azul

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho

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sexta-feira, abril 07, 2006

Dicionário do Amor (Antologia de poemas de amor). Letra A: Avessos

O Quereres

Onde queres revólver sou coqueiro
E onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo
E onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto eu sou o chão
E onde pisas o chão minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão
E onde queres cowboy eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato eu sou espírito
E onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido sou herói
Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock’n’roll
Onde queres a lua eu sou o sol
E onde a pura natura, inseticídio
Onde queres mistério eu sou a luz
E onde queres o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal a quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim


Caetano Veloso

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